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sexta-feira, 10 de abril de 2009



Medo da Senhora

A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse
judiada.

Mário de Andrade

A palavra “judiar” significa atormentar, maus-tratos, crueldade. Trata-se de uma alusão ao povo judeu que, historicamente foi perseguido por outros povos. Primeiramente, foram escravos no Egito onde eram maltratados pelo por seus senhores e faraós. Mais tarde, em 586 AC quando Jerusalém foi destruída pelos Babilônios, foram feitos cativos novamente, e tem inicio a primeira diáspora. Finalmente, quando os Romanos conquistaram Jerusalém, o imperador Adriano expulsa os judeus da cidade em 135 AD, tem início a segunda diáspora e os judeus são espalhados pelo mundo. Além da perseguição nos diversos países para onde fugiram, houve uma intensificação durante a inquisição católica na Espanha e Portugal pouco antes de 1500 e, no século XX foram vítimas do holocausto na Alemanha nazista. Isto os coloca, no imaginário coletivo, na posição de vítimas de sofrimento.
O autor faz uso deste conhecimento de mundo para indicar o que acontecia com homens e mulheres negros, tirados à força de vários países no continente africano e levados a lugares distantes em diversos países das Américas. No Livro O Povo Brasileiro, páginas 119 e 120, Darcy Ribeiro comenta: “(...) maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.”
A filhinha nascida ‘nas costas’ representa os filhos da África, que vinham, na maioria, da costa africana. Por razões logísticas, já que os caçadores de escravos eram, entre outros, navegadores portugueses, havia uma preferência pelos negros que viviam perto do mar, ou ‘nas costas’ do continente africano. Em seu livro, página 114, Darcy Ribeiro comenta: “Os negros do Brasil, trazidos principalmente das costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros.”
Aqui chegando eram levados para lugares diferentes de norte a sul. O fato de Mario de Andrade citar o rio Paraíba em seu poema indica que esta escrava vivia em uma das fazendas no sudeste do Brasil, onde havia muitas fazendas de café no final do século XIX e de onde era extraída grande parte da riqueza do Brasil. (Ribeiro p. 116): “Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exerceria um papel decisivo na formação da sociedade local.” A escrava do poema representa, de forma alegórica, todas as escravas que viviam nestes diferentes lugares.
Como o poeta trabalha a língua de forma ambígua, outra possibilidade é que, a ‘filhinha’ com quem a escrava atirou-se ao rio, seja prole do senhor da escrava citada. Segundo Darcy Ribeiro, era comum que os homens brancos, senhores de escravos, estuprassem suas escravas, ou tivessem, entre elas, concubinas. Isto causava o nascimento de crianças mistas. Contudo, elas não eram reconhecidas pelos senhores como seus filhos, não tendo assim, direito à herança juntamente com os filhos brancos, tidos com suas mulheres legítimas, senhoras brancas. Eram assim considerados escravos ou então expulsos das terras do patrão e acabavam, como os judeus, sem pátria, sem trabalho e sem direitos. Conseqüentemente, eram maltratados onde quer que fossem.
A ambigüidade do título está aqui. ‘Medo da senhora’ indica o medo que a senhora tinha da escrava, medo de ser trocada por ela, não como esposa legítima, mas como amada. Medo de que o senhor, após o nascimento da filha, a reconhecesse como filha legitima. A literatura brasileira conta histórias verídicas de senhoras brancas que castigavam suas escravas por ciúmes de seus maridos, por exemplo, A Escrava Isaura, entre outros. Ribeiro, página 163, diz: “Como teriam chegado tantas mulheres, que as estatísticas dos portos não registram? Trata-se de negrinhas roubadas que alcançavam altos preços, (...) Eram luxos que se davam os senhores e capatazes. Produziram quantidades de mulatas, que viveram melhores destinos nas casas-grandes. Algumas se converteram em mucamas e até se incorporaram às famílias, como amas de leite, (...) A negra-massa, depois de servir aos senhores, provocando às vezes ciúmes em que as senhoras lhes mandavam arrancar todos os dentes, caíam na vida de trabalho braçal dos engenhos e das minas em igualdade com os homens.” Este seria um dos motivos para a senhora maltratar, não somente a escrava, mãe da criança, mas também a própria criança.
Isto causava o ‘medo da senhora’ na escrava. Tanto que a levou a uma ação radical. Tirar a própria vida juntamente com a de sua filhinha. Se pensarmos na palavra ‘judiada’ como particípio passado do verbo judiar, e parte de uma locução verbal ‘fosse judiada’, entenderemos que a escrava cometeu suicídio para evitar o sofrimento da criança nas mãos da senhora, assim como acontecia com ela. Por outro lado, se pensarmos na palavra ‘judiada’ como um substantivo coletivo, que neste caso nomeia conjunto de seres de uma mesma espécie, entenderemos que o poeta fazia alusão ao conjunto de escravos, que, por serem maltratados, atormentados, torturados e tratados com crueldade por seus senhores, eram como a judiada, ou seja, o povo judeu. Com sua morte e de sua filhinha, a escrava evitaria que o processo se repetisse através das gerações. Este, um último recurso, já que não tinha como lutar contra a senhora.
O autor, ao falar deste tema muitos anos após a assinatura da lei Áurea, que colocava oficialmente fim a escravidão no Brasil, tenta mostrar que os descendentes diretos dos escravos libertos, também os descendentes mestiços de senhores brancos e escravas negras, eram ainda tratados com crueldade pelos descendentes brancos dos senhores dos escravos. Segundo Darcy Ribeiro e outros antropólogos é a massa indigente que compõe a nação brasileira, explorada pela elite branca. Essa massa ainda tem medo da senhora, ou de seus senhores e trabalha sob o terror de serem demitidos, maltratados, pois é uma massa sem direito e, portanto, expostos a vontade alheia de seus senhores.

(Trabalho de interpretação para curso de pós graduação em Lingua Portuguesa - PUC SP)

Um comentário:

Unknown disse...

Olá, parabéns pelo blog. O texto é excelente e disponibilizar o poema foi de excelente ajuda. Porém, gostaria de pedir para que mudasse a cor da fonte; fica muito difícil enxergar e acompanhar a leitura desse modo.